Imagens da infância me
transportam para anos atrás, uma chácara cercada por pés de bananeira,
goiabeira, pé de café, laranja e limão. Nessa chácara, em uma espécie de
clareira eu estava sentado, ao olhar para o céu os raios de sol passavam por
entre os galhos das arvores e alcançava a minha retina, um show de luzes
coloridas enchia minha visão, aurora boreal em plena América do sul.
Na
minha frente, havia outra criança, se alguém olhasse de longe poderia jurar que
havia um espelho, tinha meu cabelo, meus braços, minha altura, meu sorriso e
meus olhos, eu erguia a mão e esse alguém erguia também, era como tocar meu
próprio reflexo no espelho, eu tinha suas pernas, seus trejeitos, suas orelhas
e seu nariz, era uma imagem onÃrica de uma época que ficou nesses sonhos que
sonhamos acordados.
Por
de trás da clareira surgia um velhinho, baixinho, cabelos crespos e grisalhos,
um bigode espesso e da mesma cor, rugas pelo rosto e sorriso gostoso. Ele nos
chama e vamos correndo ao seu encontro, atravessamos o pequeno caminho de
tabuas feito na clareira para não sujar os pés de lama e chegamos até um pequeno
ranchinho de madeira, nos sentamos em baldes que estavam emborcados e ficamos
observando o velhinho pegar algumas sacas de ração e jogar milho a algumas
galinhas que estavam em um viveiro ele tinha uns passarinhos para tratar
também, cantavam muito e naquela idade não havia me questionado ainda o porquê
manter seres que voam presos em gaiola, ah... a inocência das crianças.
Era
hora do lanche, enquanto minha avó preparava o café no fogão a lenha, meu avô
ia para a venda, trazia rosca, nata, pão
de trigo e pão doce, a alegria
tava feita, todo mundo de barriga cheia. Depois disso, enquanto a vó lavava a
louça o vô ia capinar o quintal e lá seguia eu e meu irmão atrás dele, entre uma
enxadada e outra era uma história diferente, contos da sua infância, das brigas
no bairro, da competição de bolinhas de gude, do velho rádio em sua casa e dos
grandes jogos de Tostão e Pelé, o Santos de Coutinho e os gols de Eusébio.
Meu
avô já foi jogador de futebol, o melhor cabeça de área que a Fazenda Santo
Antônio já viu, depois ele foi boxeador, já foi soldado uma época também e não
posso me esquecer da noite que ele enfrentou um Lobisomen voltando para casa e
sobreviveu para batizar a filha do bicho. Meu avô já foi criança, já foi
adolescente, já foi adulto, é pai e avô, um dia ainda vai ser bisavô, e que
bisavô!
Meu avô é
ainda bem do jeitinho que eu conheci ele, nunca muda, ainda há uns dias atrás o
encontrei aparando o bigode sentado na porta da cozinha de frente para a antiga
chácara que hoje não existe mais, eu lhe disse que finalmente depois de 22 anos havia
descoberto o segredo daquilo que era sua marca registrada, ele riu, aquele
sorriso gostoso da clareira na chácara de anos atrás continuava ali, mesmo que
com algumas rugas a mais.
Um
dia meu avô não teve rugas e nem cabelo branco, deve ter sido bem antigamente,
lá na época que ele dizia ser um galã e ter conhecido a minha avó, sei também
que um dia eu terei rugas, cabelos grisalhos e talvez meu avô não esteja mais
aqui nessa terra comigo. Mas outra certeza eu tenho, naquela chácara iluminada
ele sempre estará sentado, com seu sorriso enrugado, seu bigode espesso, sua
presença única, intangÃvel, afetuosa e protetora, para além dos sonhos que
sonhamos acordados um infindável eterno se preserva, para que sejamos lembrados
e para lembrarmos, daquilo que somos, daquilo que fomos, daquilo que amamos.