Tédio Fantasma

fevereiro 17, 2018


                Eu vagava mais uma noite sozinha e entediada pelas ruas da cidade durante a madrugada, atravessando paredes, fazendo as luzes dos postes piscarem, desligando televisores das lojas de conveniência 24hrs e cruzando estradas na forma de vulto para fazer jovens adolescentes bêbados saírem correndo. Por mais que transitar por estes lugares me divertisse algumas vezes, por mais que eu ficasse observando todas as pessoas vivendo a madrugada na esperança de um novo dia, nada conseguia me tirar a sensação de intenso tédio, para mim, aquilo que eu fazia durante a noite não passava de fazer vários nada, enfim, eu já estava cansada de vagar pelas noites sem fim, sozinha, observando as pessoas interagirem, até mesmo aquelas que jaziam esquecidas em bancos esperando o ônibus do madrugadão pareciam ter mais companhia do que eu.

Foi durante uma das tantas madrugadas caminhando por ruas vazias que me deparei com uma figura estirada no chão, estava em um cruzamento, era cerca de 3 horas da manhã, todos os sinais estavam piscando em amarelo, pois, naquele horário já estavam liberados para o transito livre.

                Parei na calçada e observei aquele corpo imóvel, parecia ser um jovem, vestia uma calça jeans colada e uma camisa xadrez de manga comprida vermelha e preta, estava com os pés descalços. Havia passado o início da madruga observando uma entrada de bar, estava acontecendo algum evento com bandas de rock nas redondezas e todos os jovens decidiram ir para lá, talvez aquele garoto estirado no chão estava bêbado, era uma boa presa para um susto de leve na madrugada, bêbados gostam de sobreviver a porres com boas histórias para contar.

Assim que pensei em correr na direção do menino avistei faróis vindo atrás de mim, foi muito rápido que a caminhonete me atravessou e em uma velocidade impressionante passou por cima do rapaz. Se conseguissem me escutar naquela madrugada eu com certeza teria acordado toda a vizinhança com o grito que dei. O carro nem parou, continuou reto até sumir na próxima esquina, então sai correndo na direção do rapaz estirado para ver o estrago do acidente.

                Para minha surpresa ao me aproximar não havia acontecido nada com o menino, pela velocidade e peso do carro era para ter dilacerado o corpo dele no chão, porém o jovem continuava ali, deitado com os braços abertos, cheguei mais próximo ainda e me ajoelhei ao seu lado, olhei seu rosto. Ele tinha cabelos castanhos, um pouco cheios, porém cortados, olhos da mesma cor que seu cabelo e um rosto liso, parecia ter uns 18 anos, estava com os olhos abertos olhando para o céu.

- Olá – Eu falei e sorri.
- Oi – Disse ele balançando a cabeça, parecia atordoado.
- Está tudo bem com você, fora o fato de um carro te atravessar e não acontecer nada?
- Er ããh, eu acho que morri a umas duas semanas, fui atropelado aqui mesmo nessa encruzilhada, todos já estiveram aqui, minha família, meus amigos, meu corpo já foi levado também, mas eu continuo aqui olhando para cima, não consigo me levantar.
- Vem cá eu te ajudo.

                Me ergui, segurei ele pelas mãos e dei um puxão para trás, ele ajudou com um impulso de suas pernas e finalmente estava de pé, sacudiu os braços, se alongou, olhou para todos os lados da rua, parecia meio avoado, de repente parou de olhar para os lados girou a cabeça na minha direção e com os olhos arregalados igual um personagem de desenho animado assustado gritou

- PORRA VOCÊ TA MORTA TAMBÉM!!??
- Sim, a um bom tempo!
- AI MEU DEUS, PERA, EU JÁ HAVIA ACEITADO O FATO DE QUE MORRER E IR PARA O “OUTRO LADO” ERA ISSO: UMA ETERNA PERMANENCIA SUA NO LOCAL DA SUA MORTE!

                Fui obrigada a rir muito da cara dele.

- Hey garota, para, é sério.
- Aí me desculpa foi muito engraçado, é obvio que você não iria ficar ali para sempre! Dããh – Botei a mão nos ombros dele – A gente morre e a nossa alma aparentemente sai do nosso corpo, conseguimos acompanhar quem a gente quiser, ver como nossos familiares e amigos estão vivenciando o nosso luto etc e tal. Nos tornamos tecnicamente fantasmas.

                Ainda perplexo ele ficou de queixo caído alguns instantes e depois de refletir um pouco em silencio, soltou um sorrisinho alegre

- Não me parece tão ruim sabia.
- Claro que não, as primeiras semanas são horríveis! Você deve saber bem.
- Sim, não entendia muito bem o que estava acontecendo, meu corpo foi levado, toda a minha família estava chorando, mas depois de uma semana ali deitado comecei a superar, no começo eu escutava a voz dos meus familiares sabe? Falando comigo, pareciam sussurros no meu ouvido, falavam que iria ficar tudo bem, que eu iria sair dessa, que acreditavam que eu iria ficar bem onde quer que eu estivesse, daí do nada apareceu você e conseguiu me levantar dali.
- Nossa, nunca escutei meus familiares depois que morri, mas enfim. – Dei um tapa em seu ombro e o sacudi. – Estou muito feliz em ter te achado e poder ajudar! Estava um saco essas madrugadas sozinhas por aqui! Mas agora temos trabalho a fazer!
- Como assim!?
- Somos fantasmas mocinho, vamos aproveitar e fazer coisas que fantasmas fazem, vem você vai se divertir!
- Gostei, vamos lá, aliás, não temos mais nada a perder mesmo.

                Fazia tempo que eu não dava tantas risadas e ficava tão contente, achar o Bruno estirado no chão aquela noite foi como abrir a cortina de casa em um dia ensolarado e ver todo o frio da manhã ir embora, ah sim, o nome dele é Bruno, foi ele quem me disse, quando saímos da encruzilhada e voltamos para o centro da cidade, ele também perguntou o meu nome enquanto andávamos pela calçada, eu tinha o nome da professora que ele mais odiava na faculdade, Claudia.

                No centro da cidade apresentei ao Bruno meu parque de diversão, ensinei que se a gente se aproximasse dos postes de luz e colocasse a mão neles as luzes piscavam, se deixasse a mão neles por um certo tempo eles apagavam por completo, ele gostou da brincadeira e a melhor parte dela foi quando ele fez o poste piscar bem na hora que um garoto com sua namorada passava, o menino saiu correndo, enquanto a namorada permaneceu parada rindo dele e vendo ele cair no chão.

                Mostrei ao Bruno como atravessar paredes, bastava fechar os olhos se concentrar e PUFT estávamos dentro de uma loja de roupas provando chapéus, jaquetas, óculos, correntes, anéis e sapatos.

- Me sinto um musico famoso se arrumando para o Grammy.
- Olha isso aqui – Avistei um chapéu rosa e coloquei na cabeça, virei de perfil para ele e disse – Joanne.

                Ele soltou uma risada fofinha e se aproximou.

- Só faltava pintar teu cabelo preto de loiro.

                Além do fato de Bruno ser bem animado e empolgado em conhecer meus passatempos no “Outro Lado” ele conhecia minhas referências, estávamos mesmo se dando bem.

                Depois de revirarmos a loja inteira ele me pediu para ver como que era interferir nos sinais de TV das lojas, foi muito divertido, entramos em uma loja de um posto de gasolina, havia um funcionário no caixa meio entediado brincando com um Spinner fora ele apenas alguns clientes, havia  apenas um casal com seu filho tomando café nas mesas e dois amigos escolhendo bebidas próximo as geladeiras, na TV estava passando algum canal de notícias, eu e Bruno caminhamos até a frente da TV.

- E agora? – Ele perguntou.
- E agora basta olhar para a TV e piscar.
- Só isso??
- Anda logo e pisca.

                Bruno piscou e a TV piscou, ficou impressionado, não parava de pular e piscar, sua gargalhada encheu minha noite de alegria, ver algo que eu fazia a tanto tempo não ser banal para outra pessoa, eu realmente estava sentindo algo aquela noite, era uma alegria que eu não sentia a muito tempo. O pessoal da loja ficou assustado com o pisca pisca na TV, o balconista tentou mexer no controle e não adiantou, tentou desligar ela e não conseguiu, Bruno desligou a TV com uma piscadela, em seguida deixou apenas uma linha branca atravessando a tela, o Balconista se levantou sob os olhares de todos na loja, foi até a TV e sacudiu ela.

- Que porra aconteceu com isso aqui?

                Deu alguns tapinhas e nada mudou, quando o balconista cerrou o punho e deu um soco de cima para baixo nela, Bruno foi rápido e piscou, ligando a TV em um canal adulto com o som no volume 100, eu rolei no chão de rir, os gemidos fizeram a família ficar assustada, os colegas que escolhiam bebidas gargalharam tão alto quanto eu, o Balconista caiu para trás, se levantou apenas para puxar o fio da TV da tomada acabando com o ménage na TV e os gemidos dentro da loja, Bruno se virou foi até onde eu estava deu uma piscadinha e disse.

- Foi sem querer eu juro.

                Continuamos vagando por ai de madrugada, ter uma companhia era algo maravilhoso, Bruno estava animado com todo aquele mundo novo, apagamos vários postes, assustamos várias pessoas, até entramos em uma sala de cinema para assistir a um filme. Depois disso fomos para meu lugar preferido, o terraço de um edifício empresarial gigante localizado no meio do centro da cidade, sentamos um do lado do outro na beirada do prédio, nossos pés balançavam com o vento.

- Você já se jogou alguma vez Clau?
- Uhum.
- Como assim!? Sentiu alguma coisa?
- Nada, a queda é como se fosse com o peso do seu corpo normal, a batida no chão também, só que não sentimos nem acontece nada com a gente.
- Uaaaal – Ele ficou olhando a estrada lá em baixo. - Sempre tive medo de altura sabia? Mas né, sinto que agora não preciso ter.
- Estamos mortos nada pode acontecer de pior. – Notei que ele estava me olhando, sua mão retirou os cabelos que caiam na frente dos meus olhos, ele parecia preocupado.
- A quanto tempo e como você veio parar aqui? Parece que você conhece tanta coisa, me ajudou muito de certa maneira a aceitar esse estado.
- Faz tempo mesmo, eu morri a uns 10 anos atrás, morava na cidade apenas com meus pais, eu era adotada, então éramos muito unidos, morri igual você, em um acidente de carro.
- Sinto muito.
- Já passou, eu superei tudo isso, eles faleceram junto comigo no acidente sabe, mas nunca encontrei eles, não sei para onde foram.
- Você já achou outros fantasmas?
- Sim, já achei, muitos não gostam da ideia de ficar por aí igual a eu, então eles vão para o cemitério, lá existe uma espécie de “espirito diferente”, ele entrega um lençol branco para a gente com furos no espaço onde colocamos os olhos e a gente vai para o mundo dos fantasmas, tipo Gasparzinho.
- Anh?
- To brincando né bobo.
- Para com isso, eu acredito em você. – Bruno ria bastante, gostava dele, ele se aproximou de mim, me abraçou e encostou a cabeça no meu ombro.
- Já apareceram outros fantasmas, mas eles somem também, não sei se devo completar algum tipo de missão, para poder ascender ao céu ou definitivamente sucumbir para o inferno, se eu for para o inferno espero que seja igual ao informo do filme “Um diabo diferente”, tenho um crush no Harvey Keitel.
- Melhor que ter um no Adam Sandler.
- Concordo.

                Quando viramos fantasmas conseguimos sentir frio, calor e tocar nas coisas como antigamente, não é bem como antigamente sabe, mas é próximo a sensação de quando estávamos vivos, aquela noite estava fria, a mão do Bruno estava quente, então ele segurou na minha e disse.

- Sabe, eu estou morto, mas estou me sentindo bem feliz com você aqui, sinto que existe um mundo novo para ser descoberto sabe?
- Sei sim, esse mundo enjoa Bruno, mas acho que a dois ele pode ser bem melhor.

                Olhei para ele, nos beijamos ali no terraço, 10 anos sem beijar na boca é bastante tempo meus amigos! Então vamos pular essa parte, foi um beijão e é isso.

                Continuamos juntos, atravessando as madrugadas naquela semana. Quando somos fantasmas assim que amanhece parece que a gente apaga, fica tudo preto e é como se a gente dormisse e acordasse já no outro dia, quando o sol está deitando e a noite está tomando conta.

 Eu e Bruno sempre nos abraçávamos durante o amanhecer e acordávamos abraçados no chão no final da tarde, para começar nossa maratona de pegadinhas, risadas, sorrisos e sustos. Tudo corria de uma maneira maravilhosa, assistimos a todas as estreias de filmes no cinema, entravamos em lojas de vídeo game para jogar, até voltamos na loja de conveniência que assombramos na nossa primeira noite, o balconista não era mais o mesmo.

Nossa rotina era boa juntos, gostávamos um do outro, esquecíamos até que tínhamos existido em épocas diferentes, ao lado de Bruno, tanto eu quanto ele esqueciam de que já vivemos uma outra vida antes dessa.

Isso até certo dia, quando estávamos caminhando por uma parte da cidade onde existiam diversos prédios parecidos, casas feitas para serem alugadas com um custo baixo, eu estava contando uma piada para ele e estávamos rindo muito, quando repentinamente ele parou na frente de uma calçada, ficou pálido, até mesmo para um fantasma, apertou forte a minha mão, olhou em direção da entrada de uma das casas no pequeno prédio que estava do nosso lado e falou.

- Clau, é a minha casa...
- Nossa, você é praticamente vizinho da minha falecida vó, vai querer entrar?
- É estranho, esse tempo todo que passamos juntos, as vozes dos meus familiares que sussurravam em meus ouvidos desapareceram, é como se eu tivesse esquecido completamente deles, e agora parece ter voltado, estou sentindo algo mais forte, quer entrar comigo?
- Lógico, vamos lá.

                De mãos dadas fomos pelo caminho de pedrinhas que levava da calçada até a porta da casa, fechamos os olhos para atravessar ela e em instantes estávamos na sala da casa de Bruno, estava tudo escuro, era uma sala pequena, com um sofá e uma poltrona próximos a TV, no final da sala uma pequena cozinha, com uma porta ao lado que parecia ser o banheiro, a nossa direita tinha um corredor pequeno com duas portas.

- Aqui, essa primeira porta é meu quarto.

                Como dois fantasmas de mãos dadas adentramos o quarto dele, era um quarto espaçoso até, tinha uma cama de solteiro no canto esquerdo um armário no canto direito e uma escrivaninha cheia de livros e um computador fechado ao lado da porta de entrada.

- Ele está arrumado, caso contrário não conseguiríamos entrar nem sendo fantasmas.

                Olhei para ele, seu sorriso sempre aparecia para me deixar tranquila, mas tocando sua mão eu conseguia sentir que ele não estava tranquilo. Saímos do quarto dele e voltamos para o corredor, paramos na frente da porta do quarto de seus pais, Bruno me olho, por um momento deve ter pensando em dar meia volta e sair, observar seus pais poderia ser doloroso, mesmo assim ele segurou forte a minha mão, fechamos os olhos e quando abri estava no quarto dos pais dele, mesmo tamanho que o outro quarto, havia uma cama de casal logo ao nosso lado na entrada, armários embutidos na parede, uma TV no canto oposto a da entrada e um porta que levava a um banheiro reservado, o quarto estava ali, os pais de Bruno não.

- A essa hora? Para onde devem ter ido?
- Eu não sei Clau, não temos parentes próximos e eles não gostavam de sair muito a noite, diziam ser coisa de jovem.
- Vamos dar uma olhada na casa, anda.

                Bruno voltou para o seu quarto, começou a mexer nas suas coisas, mostrou algumas fotos antigas, mostrou sua velha coleção de gibis e depois voltamos para a sala, na mesa onde a TV ficava ele mostrou algumas fotos de família, ficou ali olhando as gavetas e eu fui até a cozinha, iria procurar alguma coisa que pudesse nos dar um indicio de como seus pais se sentiam agora pós luto, não demorei muito para encontrar algo, Bruno vinha logo atrás de mim e ficou atônito quando apontei para a geladeira, pendurado nela estava uma foto de seus pais em um quarto de hospital, os dois ao lado de uma cama e deitado nela um jovem rapaz, entubado, a foto estava em uma espécie de porta retrato de papel com os dizeres “Força Bruno”, o garoto deitado na cama do hospital era ele.

                Nossas mãos suaram, se olhamos e da janela da sala observamos os primeiros raios de sol começarem a iluminar o dia, nos abraçamos e eu senti uma lagrima cair dos olhos de Bruno, senti ele soluçar, me abraçar forte e depois tudo ficou escuro, estava na hora do adeus.

                A aparição do Bruno foi uma das melhores coisas que me aconteceram do “Outro Lado”, após aquele dia eu tentei continuar minha rotina da melhor maneira possível, buscando tentar fazer o que fosse preciso para cumprir a minha “missão” e sei lá, descansar em paz?

Ainda não consegui, então volta e meia volto para cá, para o terraço desse edifico empresarial onde beijei ele pela primeira vez e fico relembrando dos momentos bons, gosto de imaginar Bruno acordando do coma, olhando seus pais e enchendo a vida deles de alegria, vivendo sua vida jovem no mundo terreno novamente, terminando a faculdade, escrevendo, encontrando uma nova namorada e a levando ela para o cinema, gosto de fechar os olhos e pensar que ele vai conseguir aproveitar os dias novamente e aproveitar as noites também, dormindo e sonhando, talvez alguma vez sonhe com aventuras na madrugada junto de uma menina de vestido branco, pele pálida e cabelos negros, que ele nunca vai saber qual o nome, mas espero que ele lembre-se de que encheu as noites dela de calor como se eles estivessem vivendo um dia ensolarado de verão, espero que ele lembre-se de que encheu as noites dela de alegria com seu sorriso, carinho e atenção. 

Espero que nos seus sonhos, ele tenha a certeza de que fez essa alma solitária se sentir como se estivesse viva novamente. 

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