A Gata Ruiva

março 18, 2018


2022, São Pedro de Alcântara, primeira colônia alemã do estado de Santa Catarina.

Sexta Feira.

         Era um final de tarde, as luzes da Igreja Matriz de São Pedro de Alcântara já se encontravam acesas à espera da noite, a baixo do morro onde ela ficava localizada, em uma das estradas que levava mais para dentro do município se afastando da capital Florianópolis, uma grande caminhonete Toyota rasgava o chão em alta velocidade fazendo a poeira levantar. 

            No banco da frente um homem de aproximadamente 40 anos dirigia com os olhos vidrados na estrada, ele vestia uma camisa social branca, tinha os cabelos pretos bem penteados e cortados para trás, alguns fios brancos já apareciam, o rosto era sério e um pouco enrugado, a barba estava bem-feita, parecia um desses homens de negócio que assistimos nos filmes, sempre correndo com uma maleta na mão. Ao seu lado uma mulher com aproximadamente a mesma idade dele, cabelos loiros com um corte curto, o estilo de pentear meio desleixado dava a ela um ar de jovem, seu rosto um pouco mais enrugado e envelhecido que o do marido estava focado no celular que ela segurava com as duas mãos e não parava de teclar nele.

- Caiu o sinal, Droga.
- Não teremos sinal de celular aqui amor, a ideia de comprar as estadias na casa de campo era justamente para isso, fugirmos de nossos celulares, do estresse de nossos trabalhos e das nossas discussões.
- Eu sei, desculpa... é que precisava responder urgentemente a Isabel a respeito da organização da festa de fim de ano daquela emissora de Tv.
- Vai ter que esperar o wi-fi do hotel fazenda, eu também tenho mensagens para responder urgente, a empresa não para.
- O futebol você quis dizer
- Querida não começa.
- Mas é verdade, a empresa está muito bem cuidada e você está no seu período de férias!
- Eu estou, eu sei, mas não confio em Rogério, ele é inseguro, orientei ele bem, mas o cara não tem força nas decisões que toma.
- Vai ter que ter Fábio, você é o gerente, está de férias e não deve pensar nisso.
- Olha quem fala, veio o caminho todo no celular ligada nessa organização da bendita festa de fim de ano daqueles repórteres chatos, você as vezes não se toca Ana!
- Está bem, olha, paramos por aqui.
- Isso, paramos por aqui, me desculpe, vamos tentar recomeçar, vamos aproveitar a estadia no hotel fazenda, todos me disseram que é um ótimo lugar, vai fazer bem para gente.
- Eu espero mesmo que faça.

            Enquanto o casal tinha uma de suas tão rotineiras discussões, no banco de trás, praticamente esquecida por eles se encontrava uma garota de 13 anos, encostada com a cabeça na janela, fingia estar dormindo para evitar que se fosse envolvida nas discussões de seus pais, o que rotineiramente acontecia, quando um dos dois tentava convencer ela de que tinha razão e de que era sua parceira ou seu parceiro que estava errado. A menina se chamava Julia, estava ali, abraçada a si mesmo, emburrada observando as estradas por quais eles passavam rapidamente de carro. 

            Julia tinha 13 anos, cabelos loiros e longos, todos diziam que ela iria ficar parecida com sua mãe, a menina, porém era diferente de Ana, não gostava de maquiagens, não gostava de cortes de cabelos sofisticados nem de gastar horas no salão de beleza fazendo suas unhas, por estes motivos muitas vezes preferia ir com seu pai para a empresa dele quando ele convidava, lá Julia passava muitas tardes revisando o conteúdo da aula e desenhando, ela adorava passar seu tempo pintando com tinha guache, giz de cera, canetas de hidro cor e etc. se existia algo do qual ela realmente amava fazer, era criar seu próprio mundo através da arte.

            A garota estava ansiosa pelo tempo que eles iriam ficar no hotel fazenda, ela sabia que a correria da cidade tomava a vida de seus pais de uma maneira muito agressiva, por mais que eles se esforçassem o máximo, as coisas sempre derrapavam e o bem-estar da casa era trocado rapidamente por discussões bobas, mal humor e estresse, portanto o mundo que Julia criava com suas folhas de papel A4 em branco eram sempre um refúgio.

- Querida, está acordada? – Ana se virou do banco da frente para acordar a filha. -  é logo ali na frente, chegamos amor, não é lindo o hotel?
- Nossaaaa, parece o Grande Hotel Budapeste – A menina se colocou entre os bancos da frente do carro e arregalou os olhos. – é muito lindo!
- Vamos logo entrar, ainda é fim de tarde, mas mal posso esperar pelo famoso café da manhã! – Ria Fábio.
- Não sei quem é mais guloso, você ou a Julia.

            Enquanto Ana ria do apetite do marido o carro foi se aproximando do portão do hotel que se abriu automaticamente para a caminhonete passar, por algum motivo Julia olhou para a janela de trás do carro afim de observar a estrada pela qual eles chegaram, nesse momento uma pequena movimentação chamou sua atenção, alguns gatos passavam correndo por uma grama alta que ficava encostada ao muro do lado de fora do hotel, a menina tentou ver para onde iam eles, eram cerca de 4, mas os perdeu de vista e logo voltou sua atenção para o pátio de entrada do grande hotel, onde seu pai estacionou o carro.

            A família desceu da caminhonete e foi recepcionada por uma senhora já de idade deveria ter uns 50 anos, magra e alta, cabelos grisalhos amarrados para trás e um vestido tubinho preto.

 - Boa noite, sejam bem-vindos ao Casarão das Flores – A recepcionista exibia um grande sorriso. -  . Vocês devem ser a família Souza certo?
- Exatamente, prazer eu sou a Ana e esse é meu marido Fabio.
- Nos falamos por telefone semana passada, você deve ser a Senhora Hebe?
- Exatamente, sou a “matriarca” do hotel, mantemos um serviço aqui que visa trazer a experiência de que vocês estão passando um tempo de férias como convidados no Casarão, por esse motivo, se precisarem de alguma coisa que os funcionários distribuídos nos diferentes setores do hotel não conseguirem providenciar para vocês, sintam-se à vontade para falar comigo.

            O casal se olhou e se surpreendeu com o início do tratamento, após trocarem mais um pouco de figurinhas um funcionário da recepção retirou toda a bagagem da família de dentro da caminhonete e em seguida um dos manobristas do estacionamento pegou o carro para deixa-lo guardado na garagem.

- Você deve ser a pequena Julia, não é? – Disse a Sra. Hebe se aproximando da menina.
- Isso mesmo, quem foi que construiu o hotel? O prédio principal parece ser um pouco mais antigo que os outros dois do lado?
- Olha, temos uma menina observadora por aqui. A parte principal do hotel, ou seja, o prédio do meio, já foi a anos atrás o casarão do Sr. Afonso, um homem de muitas posses aqui no município de São Pedro de Alcântara, depois que ele veio a falecer ninguém da família quis assumir a posse ou manter algum vínculo com o local, então leiloaram, uma grande rede de hotéis comprou o lugar e construiu o prédio A, a nossa direita, e o prédio B, a nossa esquerda. Todos os hospedes ficam nos prédios, e a área do casarão funciona somente para visitação e alguns eventos.
- Que interessante, não havia reparado na sua arquitetura, parabéns filha. – Disse Fabio acariciando a cabeça de Julia.
- Bom, vocês devem estar cansados, vamos acompanha-los até seus quartos.

            A família ficou no Prédio A. O quarto dos pais de Julia eram do lado do quarto dela, ambos possuíam uma pequena sacada, banheiro e cama de casal, naquela noite de sexta feira todos ficaram no quarto da menina, tiraram a noite para assistir um filme que estava passando na TV a cabo, em seguida pediram pizza através do serviço de quarto e terminaram a noite jogando Uno.
- aaaaaãh – Bocejava Fabio. -  . Assim não dá, eu ganho todas de vocês.
- Então vamos jogar Quest pai, quero ver o senhor chorando novamente. - Fabio mostrou a língua para a filha e para a esposa que não se aguentaram e caíram na risada.

A noite terminou nesse clima alegre, e quando Julia encostou sua cabeça no travesseiro realmente acreditou, que aquele tempo de férias no Hotel Fazenda, seria muito bom para seus pais conseguirem se acertar e retornarem para casa com um clima e astral melhor.

Realmente foi isso que aconteceu, ao acordar no sábado a menina logo encontrou seus pais saindo do quarto, juntos foram para o refeitório do Hotel, haviam poucas pessoas hospedadas aquele fim de semana, um bom sinal, havia pouca fila para se servir da variedade infinita de comida colonial que estava nas mesas. Durante o sábado Julia conheceu a parte externa do Hotel com seus pais, eles andaram de cavalo, caminharam pelo jardim repleto de flores, visitaram o Casarão principal, tiraram fotos dos moveis de época e a pequena garota ficou fascinada com a arquitetura antiga, a escada do casarão, o corrimão, o lustre, as janelas, tudo a fascinava.

Depois do almoço todos os hospedes se juntaram na piscina, para se refrescar do calor, tomaram sorvete e terminaram o dia ali, aproveitando o sol. Naquela noite não houve jogos, todos estavam cansados demais, os pais de Julia ficaram juntos até a pequena fechar os olhos, não demorou muito para isso acontecer, logo eles saíram do quarto e foram descansar também, somente para a garota abrir os olhos e suspirar aliviada por ter finalmente um dia em paz e alegria com eles.

Domingo,

            O dia começou igual a sábado, dessa vez Julia foi acordada por sua mãe, após se arrumarem seguiram juntas para o refeitório, encontraram seu pai e tomaram café todos juntos, ao terminar Fabio convidou elas para ir visitar a quadra, as famílias que estavam hospedadas haviam combinado de fazer um campeonato de vôlei, Fabio queria que Ana fosse sua dupla e a esposa aceitou.

            O resto da manhã se seguiu assim, bola para um lado, bola para o outro, manchete e bola na linha, belos bloqueios e ponto de saque para Ana. Julia se deliciou e ficou muito feliz com a dupla que seus pais estavam formando no vôlei, porém foi durante uma partida deles que algo tomou a atenção da garota, ao lado da quadra de vôlei fica o jardim das flores, e lá da arquibancada ela conseguia ver uma pequena movimentação nos corredores do jardim, atenta e depois de esfregar um pouco os olhos percebeu que eram gatinhos!

            Rapidamente a garota desceu correndo a arquibancada, passou aos pulos pelos familiares que estavam sentados ali, a passos largos chegou na entrada do grande jardim e caminhou apressadamente até o local onde os gatos estavam, eram vários, todos muito pequenos, filhotinhos apenas. Tinha preto, branco, amarelinho, mesclado, cinza, frajola, enfim, deveriam ser uns 10 gatinhos, a menina se ajoelhou na grama e os gatinhos após perderem o medo da presença dela, se jogaram em cima da jovem e começam a dar pequenas mordidinhas em seus dedos, mamar sua calça e se aconchegar no seu colo.

            A menina não viu a hora passar, as flores e os gatos eram algo que ela não tinha contato na cidade grande, estava gostando dos bichinhos, seria um bom presente de aniversário, pensou Julia. No meio de todo aquele fascínio um latido a assustou, era feroz, parecia vir de uma criatura forte e raivosa, os gatinhos ergueram as orelhas e viraram na direção do corredor que levava mais para dentro do jardim, nesse momento Julia se levantou e deu uns passos para trás, dos confins do jardim apareceu um gigantesco cachorro preto, salivava para os gatinhos que sem pensar duas vezes se enfiaram por dentro das flores e sumiram, Julia se virou para sair correndo na direção oposta do cachorro mas colidiu com alguém, caiu de bunda no chão e ergueu os olhos para dar de cara com um velho grande, deveria ter um metro e noventa, ombros largos e muito magro, vestia um casaco grosso no meio daquele calor, calça camuflada e botina preta, seu rosto era fechado e parecia estar de mal humor, os cabelos eram ralos e brancos, a barba estava por fazer.

- Vamos Rojão, vem cá.

            O cachorro mudou seu semblante de feroz para muito dócil, se aproximou do dono e lambeu a mão dele.

- Ainda pego aqueles malditos gatos, se machucou garota?
- Não, só me assustei.

            Nesse momento, chega apressada a Sra. Hebe.

- Garota! Por onde andava, seus pais estão te procurando!
- Desculpe, perdi a noção do tempo, vi os gatinhos aqui e simplesmente amei eles!

            A Sra. Hebe se aproximou da menina e a abraçou, são lindos mesmo. Nesse momento o velho homem já estava indo embora, a matriarca do Hotel explicou para Julia que aquele homem era o Sr. Al, o velho jardineiro do casarão, ele tinha uma casa próxima e trabalhava com o serviço externo do hotel, além de ser o grande responsável pelas flores do jardim, ele não gostava de gatos e amava seu cachorro Rojão.

            Julia voltou para seus pais, almoçaram juntos, eles ficaram em segunda posição no campeonato da família, Fabio disse que foi graças a Ana, por que se dependesse dele, nem na final chegariam.

- Tenho que concordar com isso amor.

            A família estava em paz naquele domingo de sol, que se encerrou mais uma vez na piscina, desfrutando do sol que banhava o corpo de todos aqueles corpos buscando refúgio no interior do estado de Santa Catarina.  Julia aproveitou para desenhar, Ana para colocar a leitura em dia e Fabio para praticar algumas braçadas. Essa paz toda estava sendo um sonho para Julia, a certeza de que as coisas iriam mudar para a melhor em casa quando retornasse, porém, infelizmente nossa menina estava enganada, naquela noite de domingo seus olhos não pregaram, ela sabia que era feio escutar a conversa dos pais atrás da porta do quarto deles, porém foi inevitável, alguns gritos fizeram a jovem sair das cobertas e ficar de plantão no corredor curiosa e preocupada com a situação, tudo continuava normal, os dois permaneciam se desentendendo.

- Desse jeito Fabio, devemos pensar no que fazer entre a gente!
- Ana, eu acho o mesmo, sabe que a papelada está toda pronta desde a última vez que você mencionou se mudar para a casa de seu pai.

            Divórcio, separação e Julia, foram algumas das palavras que a menina escutou naquele momento de furor do casal, desorientada saiu aos prantos corredor a fora, passou correndo por todo o Prédio em direção do casarão principal, ela sabia que lá era um lugar silencioso e pouco habitado, então rapidamente chegou no saguão principal, levou um susto e se escondeu rapidamente atrás de uma pilastra, ao ver o Seu Al caminhando pela sala com um lampião acesso na mão, o velho mantinha aquele semblante sério, parecia procurar algo, a menina suspirou fundo, o velho parou e olhou para trás, na direção da pilastra onde ela se escondia, ficou alguns segundos prestando atenção no silencio, depois foi até a porta principal e saiu para a rua.

            Aliviada Julia saiu de seu esconderijo, o saguão principal era lindo e estava sendo iluminada pelas estrelas, o silencio dessa vez foi interrompido por um barulho de algo caindo, esse barulho fez ecos no saguão, a garota percebeu que o barulho vinha do andar de cima, de algum lugar no segundo piso do casarão, ficou com um pouco de medo, mas não queria ser pega, muito menos chorando, então achou uma boa ideia achar o barulho, antes que ele encontrasse ela.

            A passos leves e silenciosos nossa garota subiu as escadas do casarão, vestindo um pijama de calça e mangas cumpridas do Star Wars era realmente uma figura em contraste com o ar clássico daquele local. Ao alcançar o topo da escada, percebeu que uma leve luz surgia do corredor a sua esquerda, a menina foi caminhando devagar, se aproximou e encontrou no fundo do corredor uma porta aberta, a luz que entrava por ela, era a luz da lua. Antes de avançar deu mais uma olhada para o saguão, a barra estava limpa, então a passos largos ela adentrou a sala aberta.

            Era um escritório, algo simples, uma sala ampla, com uma mesa redonda a direita, cercada por duas cadeiras e uma serie de estantes de livros que enchiam a parede, no centro da sala havia um sofá para duas pessoas e uma poltrona, na esquerda da sala um armário antigo de madeira fechado e a escrivaninha, abandona e muito tempo. Nada disso chamou a atenção de Julia, pois logo que entrou percebeu que a porta que dava acesso a sacada da sala estava aberta, e era ela que abria espaço para luz da lua, a garota seguiu reto pela sala, passou a poltrona e o sofá, quando se aproximava da porta para a sacada a passos acelerados, tropeçou e exclamou.

- Ai!

            Olhou imediatamente para baixo e viu que havia dado uma topada com o dedo mindinho do pé direito em um Globo Terrestre de madeira que estava caído no chão, devia ser esse o objeto que provocou o barulho, mas quem o havia derrubado e aberto a sala?

            A menina logo descobriu, na sacada, posicionada de frente para a sala, como a observar a topada da garota, uma gata, a luz da lua a iluminava com força e Julia percebeu que seus pelos eram vermelhos, uma espécie de ruivo natural, algo que aos olhos da menina naquela altura da noite parecia sobrenatural de tão belo.

- Oi mocinha, então foi você que fez esse barulho todo? Vem cá vem.

            A gata era muito dócil e logo se aproximou de Julia, a menina ficou ali contemplando a gatinha, acariciando ela, quando menos percebeu estava lacrimejando e contando para o pequeno animal, tudo que havia passado em casa, a esperança de uma renovação no relacionamento de seus pais ali no hotel, o início de uma renovação e a imediata queda dessa esperança de renovação com a briga daquela noite.

            A menina pegou no sono lá mesmo, sentada no escritório do Casarão Principal, acordou estava amanhecendo, o sol estava quase chegando e não havia gata alguma na sala. Julia saiu apressada e foi logo para dentro do seu quarto, deitou na cama como se de lá nunca tivesse saído a noite toda e por sorte foi bem a tempo, já que alguns minutos depois sua mãe estava acordando ela para ir tomar café.

            O clima estava bem triste naquela segunda feira, seus pais não estavam se falando, tentavam não demonstrar qualquer sinal para a filha, porém uma menina de 13 anos não possui os olhos e ouvidos tão inocentes assim. Aquele dia diferente dos outros dois do fim de semana teve o clima bem estranho, não cavalgaram, não foram jogar vôlei, simplesmente ficaram à deriva pelo hotel, um se esquivando do outro, e Julia ficou igual uma bola de vôlei, sendo lançada de um lado para o outro, do campo da mãe, para o campo do pai, e vice e versa, pareciam duas crianças, dramatizando sua situação para a filha, a garota já cansada no final da tarde, nem para a piscina foi, se enfiou no quarto e pegou no sono rapidamente, exausta da noite que ficou acordada no escritório com a gata ruiva.

            No meio daquela noite, já deveria ser quase duas da manhã, a garota despertou, era um problema dormir cedo para ela, pois sempre acordava na madruga e não conseguia mais pegar no sono, entediada de rolar de um lado para o outro, se levantou e puxou na sua mochila um livro que ainda não havia começado Joyland do Stephan King, um mistério que prendeu a jovem durante as primeiras 10 páginas, depois disso ela o jogou em cima da escrivaninha do quarto novamente e se jogou suspirando profundamente em cima da cama.

            Olhando para o teto  se lembrou do escritório, não pensou duas vezes e rapidamente já havia tomado o corredor, vestia um moletom cinza com touca por cima do pijama e uma bolsa a tiracolo, já com o caminho conhecido rapidamente ela estava no saguão de entrada do Casarão Principal, tirou as pantufas para subir as escadas sem fazer barulho, quando dobrou a direita para entrar no corredor do refeitório um barulho fez ela tremer, vinha da porta principal de entrada do saguão, Seu Al estava abrindo ela novamente, segura o lampião, seu corpo alto, grande e magro adentrou a sala e caminhou por entre ela, olhou os pilares que sustentavam o segundo piso, parou no centro da sala e retornou para a porta, saindo rua a fora. A menina havia se abaixado e colocado a mão na boca, com o coração acelerado foi correndo em direção da porta do escritório, fechou os olhos, colocou a mão na maçanete e por sorte, a porta estava aberta de novo.

            Lá dentro a lua continuava iluminando a sala, a menina olhou para a porta da sacada, estava fechada, decidiu abrir, o lado de fora estava vazio, mas talvez ainda tivesse sorte de encontrar a gatinha. Sem sono, deixou sua bolsa em uma das poltrona e caminho até a escrivaninha da sala, ficou mexendo nas coisas antigas, caneta de pena, livros velhos, tinteiro e rolos de papel, atrás da escrivaninha, uma estante gigantesca, da madeira maciça, a menina muito curiosa abriu uma das portas e encontrou uma foto. Era de uma família, eles estavam na frente do Casarão Principal, uma foto em preto e branco, muito antiga, que mostrava um pouco como era aquele local a anos atrás. No centro da foto havia um velho senhor de cadeira de rodas, ao seu lado direito uma senhora, se vestia de forma muito parecida da Sra. Hebe, ao lado esquerdo do senhor de cadeiras de rodas estava um alto homem de cerca de quarenta anos, seguido de uma bela mulher, que abraçava a sua frente um pequeno menino, de cabelo negros, olhos esbugalhados e um leve sorriso no rosto, deveria ter uns cinco anos.

            Julia guardou a foto no local de onde retirou ela, fechou a porta da estante, e o reflexo do espelho da portinha mostrou uma criatura atrás dela, ao se virar rapidamente, encontrou a gata ruiva, deu um sorriso para o animal, que miou baixinho e saltou para perto da menina. As duas se aconchegaram no sofá, Julia gostava da gatinha e ficou ali brincando com ela bastante tempo, depois disso começou a contar para o animal tudo que estava acontecendo, a gata ruiva mantinha as orelhas erguidas e atenta a tudo que a garota falava, parecia uma amiga, disposta a acolher as palavras de sua colega com atenção e empatia, Julia de certa maneira estava conseguindo descarregar toda sua vontade de falar sobre aquilo, na companhia da gatinha, depois de chorar bastante, deu algumas risadas, com as lambidas que a gatinha dava nas suas lagrimas.

- Faz cocegas, para gatinha. Espera! Você tem que ter um nome, e eu já sei qual é!  
       
            Julia se ergue, pegou sua bolsa na poltrona e começou a procurar alguma coisa, mexeu e virou sua bolsa e tirou dela uma pulseirinha, com uma pedrinha vermelha pendura.
- Toma, vem cá. - A gatinha se aproximou, e Julia colocou o colar no pescoço da gatinha, encaixou perfeitamente. - Você ficou linda viu, essa pedra é uma Ágata vermelha, vou te chamar de Ágata, se você estudasse no meu colégio, provavelmente algum garoto babaca iria fazer a piada de te chamar de A gatinha, mas acho que não existe isso no mundo dos gatos.

            Depois daquela noite, Julia teve certeza de que iria encontra Ágata todas as noites no escritório do Casarão, e a menina acertou, o resto daquela semana se seguiu assim, Julia segurava a barra de aguentar seus pais em crise e brigados durante o dia, sempre com o pensamento de que iria passar as noites bem, ao lado de sua nova amiga, no escritório que parecia perdido e intocado a 50 anos atrás no tempo, era o cenário perfeito para a menina desabafar, desenhar, ler e escutar música, sempre ao lado da gata ruiva.

            Aquela seria a última semana da família no hotel, eles iriam embora no sábado pela manhã, totalizando uma semana hospedados no hotel. Julia, com o sono desregulado por passar as noites em claro, nem percebeu que aos poucos seus pais estavam fazendo as pazes e estavam melhores do que nunca, pareciam um casal de adolescentes que acabara de começar um namoro, porém a garotinha estava encantada demais pela liberdade do escritório abandonado e a companhia de Ágata.

            Na última sexta feira no hotel, Julia já fazia planos, de quando retornar para casa, pedir um gatinho para seus pais, até cogitou na hipótese de sequestrar Ágata e levar ela na mala, mas rio da própria ideia e se achou um tanto louca. A menina naquele fim de tarde de sexta feira, saiu da piscina mais cedo, disse aos pais que queria terminar de arrumar as malas para ir embora no outro dia e subiu para o quarto, lá ela organizou tudo para só acordar no sábado de manhã e descer para ir embora, depois de arrumar tudo muito rápido, fechou as cortinas do quarto, se jogou na cama e dormiu, pronta para acordar no meio da noite e se despedir de Ágata, não demorou para o sono cair sobre a jovem e como em um piscar de olhos ela despertou com algo pulando em cima dela, era uma gata, Ágata a gata ruiva.

- O que você faz aqui? – A menina despertou com um sorriso imenso, agarrando fortemente o animal e dando um abraço. Porém o animal se saiu dos braços dela rapidamente, parecia assustada e não parava de miar, Julia percebeu que havia algo errado, e quando a gata pulou para o chão e se posicionou na frente da porta do quarto a menina colocou as pantufas e saiu de baixo das cobertas rapidamente, ela deveria por algum motivo seguir Ágata.

            Saiu corredor a fora e começou a correr atrás do animal, foi um susto, Julia conseguiu apenas colocar as pantufas e pegar o celular, eram três horas da manhã, Ágata passou correndo pelo corredor que dava acesso ao casarão antigo, logo as duas estavam no saguão principal, Julia abriu a grande porta para a gatinha e as duas saíram pelo gramado a fora correndo, atravessaram a área das quadras de esporte e entraram no jardim de flores, Julia perdeu Ágata de vista, seu coração acelerou, mas a garota continuou correndo e adentrando o centro do jardim de flores, era quase como um labirinto, com a frente tomada pelo escuro o medo já deixava seu corpo todo arrepiado, apavorada, dobrou a esquerda em um corredor e deu de frente com um muro, nele uma portinha de madeira, Ágata estava parada ali, arranhando a porta e miando.

- Ai meu deus, achei você! Deixa eu abrir.

            Abriu a porta e adentrou o muro com a gatinha, havia uma pequena trilha de lajotas que levava para uma cabana de madeira, na frente da cabana uma lanterna quebrada no chão emitia um pequeno brilho, era a lanterna do Seu Al, o jardineiro.

- É a casa daquele senhor...
- Meow!

            Ágata não parou, a porta da cabana estava aberta e rapidamente a gatinha sumiu dentro dela, Julia foi atrás, entrou na cabana e logo na entrada encontrou o velho senhor caído no chão com a mão no peito, seu bravo cão estava sentado ao seu lado, ao invés de latir ferozmente choramingava igual um bebe, e lançou para a garota um olhar de desespero, Julia se ajoelhou ao lado do velho, ele encostou na menina e começou a tremer, olhava para um lago e para o outro, até prender o olhar na gatinha ruiva que se posicionou do lado oposto que Julia estava.

- Calma seu Al, vou ligar para a emergência do Hotel – A menina se levantou nervosa e começou a discar o número – Alo, aqui é Julia, estou hospedada no 1617, estou na cabana do jardineiro, o Seu Al, pelo menos eu acho que é a casa dele, ele está passando mal, não sei o que fazer, preciso de ajuda, RÁPIDO!

            Enquanto a garota falava com a emergência do Hotel, o velho parava de tremer e olhava para a gata, esticou as mãos e com seus dedos grossos e calejados tocou o colar de Ágata Vermelha, emitiu um sorriso, seu semblante pareceu o de uma criança, lentamente sussurrou. - Est...
            Seu Al fechou os olhos, a emergência chegou.

1 ano depois, Florianópolis, Beira Mar Norte.

            Na sala de estar do apartamento de Julia, a garota estava sentada no chão com seus pais, estavam todos rindo, vendo fotos antigas e desenhos antigos da menina, estavam todos bem, depois daquela estadia no Hotel Fazenda realmente o espirito do casal se sentia renovado, Julia naquela tarde estava contando para seus pais como achou o Seu Al naquela noite passando mal na cabana, por pouco ele não havia falecido, hoje depois de um ano o  jardineiro passava bem, porém não trabalhava mais no hotel, estava em uma casa de repouso para idosos.

- Pera aí filha – Fabio estava rindo e balançava a cabeça, parecia não acreditar- Você está dizendo que foi uma gata que guiou você até a cabana naquele dia?
- Sim, depois que vocês brigaram eu encontrei uma gata no escritório abandonado, no Casarão antigo, ela era ruiva! Toda vermelhinha! Se tornou meu diário tadinha, passei várias noites lá mentalizando coisas boas, pensando que iriamos conseguir sair de lá e com vocês dois de bem e não brigados. – Os pais se entreolharam e se abraçaram, tinham uma filha muito madura. – Fiz até um desenho dela, olhem.

            Assim que seus pais pegaram o desenho na mão se espantaram, um olhou para o outro, em seguida para o desenho e depois para a menina.

- Acho que conhecemos sua amiga...- Disse Ana.
- Depois da nossa briga, nos afastamos filha, e só voltei a falar com sua mãe, depois que de certa maneira, começamos a falar de um sonho estranho que tivemos, um sonho em que éramos gatos perdidos no mato, e que uma gata, peluda e muito parecida com essa, de cor vermelha nos guiava para fora do matagal.
- Que? Que droga vocês usaram lá!?

            Todos começaram a rir, o desenho ficou ali, na mesinha da sala, no meio de muitos outros que Julia havia feito lá, o mistério permaneceu com aquela família durante bastante tempo, Julia nunca esqueceu de Ágata a gatinha ruiva do casarão a menina sabia que tudo aquilo que viveu era real, seus pais nunca iriam esquecer do sonho que tiveram na mesma noite e que os uniu para sempre, até o final de seus dias.

            Já Ágata permaneceu no hotel, permaneceu habitando o escritório abandonado todas as noites, permaneceu vigiando as terras do hotel em cima da sacada, permaneceu no jardim de flores cuidando dos outros gatinhos que ali ficavam brincando perdidos, permaneceu no encanto daquele lugar, permaneceu encantando todos aqueles que a encontravam, permaneceu enchendo de magia aquele lugar isolado, mantendo sua beleza sobrenatural que em outrora e muito tempo atrás já foi uma beleza natural, puro a inocente, como uma criança que do mundo pouco entende.

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