Eu
vagava mais uma noite sozinha e entediada pelas ruas da cidade durante a
madrugada, atravessando paredes, fazendo as luzes dos postes piscarem,
desligando televisores das lojas de conveniência 24hrs e cruzando estradas na
forma de vulto para fazer jovens adolescentes bêbados saírem correndo. Por mais
que transitar por estes lugares me divertisse algumas vezes, por mais que eu
ficasse observando todas as pessoas vivendo a madrugada na esperança de um novo
dia, nada conseguia me tirar a sensação de intenso tédio, para mim, aquilo que
eu fazia durante a noite não passava de fazer vários nada, enfim, eu já estava
cansada de vagar pelas noites sem fim, sozinha, observando as pessoas
interagirem, até mesmo aquelas que jaziam esquecidas em bancos esperando o ônibus
do madrugadão pareciam ter mais companhia do que eu.
Foi durante
uma das tantas madrugadas caminhando por ruas vazias que me deparei com uma
figura estirada no chão, estava em um cruzamento, era cerca de 3 horas da
manhã, todos os sinais estavam piscando em amarelo, pois, naquele horário já
estavam liberados para o transito livre.
Parei
na calçada e observei aquele corpo imóvel, parecia ser um jovem, vestia uma
calça jeans colada e uma camisa xadrez de manga comprida vermelha e preta,
estava com os pés descalços. Havia passado o início da madruga observando uma
entrada de bar, estava acontecendo algum evento com bandas de rock nas
redondezas e todos os jovens decidiram ir para lá, talvez aquele garoto
estirado no chão estava bêbado, era uma boa presa para um susto de leve na
madrugada, bêbados gostam de sobreviver a porres com boas histórias para
contar.
Assim que
pensei em correr na direção do menino avistei faróis vindo atrás de mim, foi
muito rápido que a caminhonete me atravessou e em uma velocidade impressionante
passou por cima do rapaz. Se conseguissem me escutar naquela madrugada eu com
certeza teria acordado toda a vizinhança com o grito que dei. O carro nem
parou, continuou reto até sumir na próxima esquina, então sai correndo na
direção do rapaz estirado para ver o estrago do acidente.
Para
minha surpresa ao me aproximar não havia acontecido nada com o menino, pela
velocidade e peso do carro era para ter dilacerado o corpo dele no chão, porém
o jovem continuava ali, deitado com os braços abertos, cheguei mais próximo
ainda e me ajoelhei ao seu lado, olhei seu rosto. Ele tinha cabelos castanhos,
um pouco cheios, porém cortados, olhos da mesma cor que seu cabelo e um rosto
liso, parecia ter uns 18 anos, estava com os olhos abertos olhando para o céu.
- Olá – Eu falei e sorri.
- Oi – Disse ele balançando a cabeça, parecia atordoado.
- Está tudo bem com você, fora o fato de um carro te
atravessar e não acontecer nada?
- Er ããh, eu acho que morri a umas duas semanas, fui
atropelado aqui mesmo nessa encruzilhada, todos já estiveram aqui, minha
família, meus amigos, meu corpo já foi levado também, mas eu continuo aqui
olhando para cima, não consigo me levantar.
- Vem cá eu te ajudo.
Me
ergui, segurei ele pelas mãos e dei um puxão para trás, ele ajudou com um
impulso de suas pernas e finalmente estava de pé, sacudiu os braços, se
alongou, olhou para todos os lados da rua, parecia meio avoado, de repente
parou de olhar para os lados girou a cabeça na minha direção e com os olhos
arregalados igual um personagem de desenho animado assustado gritou
- PORRA VOCÊ TA MORTA TAMBÉM!!??
- Sim, a um bom tempo!
- AI MEU DEUS, PERA, EU JÁ HAVIA
ACEITADO O FATO DE QUE MORRER E IR PARA O “OUTRO LADO” ERA ISSO: UMA ETERNA
PERMANENCIA SUA NO LOCAL DA SUA MORTE!
Fui
obrigada a rir muito da cara dele.
- Hey garota, para, é sério.
- Aí me desculpa foi muito
engraçado, é obvio que você não iria ficar ali para sempre! Dããh – Botei a mão
nos ombros dele – A gente morre e a nossa alma aparentemente sai do nosso
corpo, conseguimos acompanhar quem a gente quiser, ver como nossos familiares e
amigos estão vivenciando o nosso luto etc e tal. Nos tornamos tecnicamente
fantasmas.
Ainda
perplexo ele ficou de queixo caído alguns instantes e depois de refletir um
pouco em silencio, soltou um sorrisinho alegre
- Não me parece tão ruim sabia.
- Claro que não, as primeiras
semanas são horríveis! Você deve saber bem.
- Sim, não entendia muito bem o
que estava acontecendo, meu corpo foi levado, toda a minha família estava
chorando, mas depois de uma semana ali deitado comecei a superar, no começo eu
escutava a voz dos meus familiares sabe? Falando comigo, pareciam sussurros no
meu ouvido, falavam que iria ficar tudo bem, que eu iria sair dessa, que acreditavam
que eu iria ficar bem onde quer que eu estivesse, daí do nada apareceu você e
conseguiu me levantar dali.
- Nossa, nunca escutei meus
familiares depois que morri, mas enfim. – Dei um tapa em seu ombro e o sacudi. –
Estou muito feliz em ter te achado e poder ajudar! Estava um saco essas
madrugadas sozinhas por aqui! Mas agora temos trabalho a fazer!
- Como assim!?
- Somos fantasmas mocinho, vamos
aproveitar e fazer coisas que fantasmas fazem, vem você vai se divertir!
- Gostei, vamos lá, aliás, não
temos mais nada a perder mesmo.
Fazia
tempo que eu não dava tantas risadas e ficava tão contente, achar o Bruno
estirado no chão aquela noite foi como abrir a cortina de casa em um dia
ensolarado e ver todo o frio da manhã ir embora, ah sim, o nome dele é Bruno,
foi ele quem me disse, quando saímos da encruzilhada e voltamos para o centro
da cidade, ele também perguntou o meu nome enquanto andávamos pela calçada, eu
tinha o nome da professora que ele mais odiava na faculdade, Claudia.
No
centro da cidade apresentei ao Bruno meu parque de diversão, ensinei que se a
gente se aproximasse dos postes de luz e colocasse a mão neles as luzes
piscavam, se deixasse a mão neles por um certo tempo eles apagavam por completo,
ele gostou da brincadeira e a melhor parte dela foi quando ele fez o poste
piscar bem na hora que um garoto com sua namorada passava, o menino saiu
correndo, enquanto a namorada permaneceu parada rindo dele e vendo ele cair no
chão.
Mostrei
ao Bruno como atravessar paredes, bastava fechar os olhos se concentrar e PUFT estávamos
dentro de uma loja de roupas provando chapéus, jaquetas, óculos, correntes, anéis
e sapatos.
- Me sinto um musico famoso se
arrumando para o Grammy.
- Olha isso aqui – Avistei um
chapéu rosa e coloquei na cabeça, virei de perfil para ele e disse – Joanne.
Ele
soltou uma risada fofinha e se aproximou.
- Só faltava pintar teu cabelo
preto de loiro.
Além
do fato de Bruno ser bem animado e empolgado em conhecer meus passatempos no “Outro
Lado” ele conhecia minhas referências, estávamos mesmo se dando bem.
Depois
de revirarmos a loja inteira ele me pediu para ver como que era interferir nos
sinais de TV das lojas, foi muito divertido, entramos em uma loja de um posto
de gasolina, havia um funcionário no caixa meio entediado brincando com um
Spinner fora ele apenas alguns clientes, havia apenas um casal com seu filho tomando café nas
mesas e dois amigos escolhendo bebidas próximo as geladeiras, na TV estava
passando algum canal de notícias, eu e Bruno caminhamos até a frente da TV.
- E agora? – Ele perguntou.
- E agora basta olhar para a TV e
piscar.
- Só isso??
- Anda logo e pisca.
Bruno
piscou e a TV piscou, ficou impressionado, não parava de pular e piscar, sua
gargalhada encheu minha noite de alegria, ver algo que eu fazia a tanto tempo
não ser banal para outra pessoa, eu realmente estava sentindo algo aquela
noite, era uma alegria que eu não sentia a muito tempo. O pessoal da loja ficou
assustado com o pisca pisca na TV, o balconista tentou mexer no controle e não
adiantou, tentou desligar ela e não conseguiu, Bruno desligou a TV com uma
piscadela, em seguida deixou apenas uma linha branca atravessando a tela, o
Balconista se levantou sob os olhares de todos na loja, foi até a TV e sacudiu
ela.
- Que porra aconteceu com isso
aqui?
Deu
alguns tapinhas e nada mudou, quando o balconista cerrou o punho e deu um soco
de cima para baixo nela, Bruno foi rápido e piscou, ligando a TV em um canal
adulto com o som no volume 100, eu rolei no chão de rir, os gemidos fizeram a família
ficar assustada, os colegas que escolhiam bebidas gargalharam tão alto quanto
eu, o Balconista caiu para trás, se levantou apenas para puxar o fio da TV da
tomada acabando com o ménage na TV e os gemidos dentro da loja, Bruno se virou
foi até onde eu estava deu uma piscadinha e disse.
- Foi sem querer eu juro.
Continuamos
vagando por ai de madrugada, ter uma companhia era algo maravilhoso, Bruno
estava animado com todo aquele mundo novo, apagamos vários postes, assustamos várias
pessoas, até entramos em uma sala de cinema para assistir a um filme. Depois
disso fomos para meu lugar preferido, o terraço de um edifício empresarial
gigante localizado no meio do centro da cidade, sentamos um do lado do outro na
beirada do prédio, nossos pés balançavam com o vento.
- Você já se jogou alguma vez
Clau?
- Uhum.
- Como assim!? Sentiu alguma
coisa?
- Nada, a queda é como se fosse
com o peso do seu corpo normal, a batida no chão também, só que não sentimos nem
acontece nada com a gente.
- Uaaaal – Ele ficou olhando a
estrada lá em baixo. - Sempre tive medo de altura sabia? Mas né, sinto que
agora não preciso ter.
- Estamos mortos nada pode
acontecer de pior. – Notei que ele estava me olhando, sua mão retirou os
cabelos que caiam na frente dos meus olhos, ele parecia preocupado.
- A quanto tempo e como você veio
parar aqui? Parece que você conhece tanta coisa, me ajudou muito de certa
maneira a aceitar esse estado.
- Faz tempo mesmo, eu morri a uns
10 anos atrás, morava na cidade apenas com meus pais, eu era adotada, então éramos
muito unidos, morri igual você, em um acidente de carro.
- Sinto muito.
- Já passou, eu superei tudo
isso, eles faleceram junto comigo no acidente sabe, mas nunca encontrei eles,
não sei para onde foram.
- Você já achou outros fantasmas?
- Sim, já achei, muitos não
gostam da ideia de ficar por aí igual a eu, então eles vão para o cemitério, lá
existe uma espécie de “espirito diferente”, ele entrega um lençol branco para a
gente com furos no espaço onde colocamos os olhos e a gente vai para o mundo
dos fantasmas, tipo Gasparzinho.
- Anh?
- To brincando né bobo.
- Para com isso, eu acredito em
você. – Bruno ria bastante, gostava dele, ele se aproximou de mim, me abraçou e
encostou a cabeça no meu ombro.
- Já apareceram outros fantasmas,
mas eles somem também, não sei se devo completar algum tipo de missão, para
poder ascender ao céu ou definitivamente sucumbir para o inferno, se eu for
para o inferno espero que seja igual ao informo do filme “Um diabo diferente”, tenho
um crush no Harvey Keitel.
- Melhor que ter um no Adam
Sandler.
- Concordo.
Quando
viramos fantasmas conseguimos sentir frio, calor e tocar nas coisas como
antigamente, não é bem como antigamente sabe, mas é próximo a sensação de
quando estávamos vivos, aquela noite estava fria, a mão do Bruno estava quente,
então ele segurou na minha e disse.
- Sabe, eu estou morto, mas estou
me sentindo bem feliz com você aqui, sinto que existe um mundo novo para ser descoberto
sabe?
- Sei sim, esse mundo enjoa
Bruno, mas acho que a dois ele pode ser bem melhor.
Olhei
para ele, nos beijamos ali no terraço, 10 anos sem beijar na boca é bastante
tempo meus amigos! Então vamos pular essa parte, foi um beijão e é isso.
Continuamos
juntos, atravessando as madrugadas naquela semana. Quando somos fantasmas assim
que amanhece parece que a gente apaga, fica tudo preto e é como se a gente
dormisse e acordasse já no outro dia, quando o sol está deitando e a noite está
tomando conta.
Eu e Bruno sempre nos abraçávamos durante o
amanhecer e acordávamos abraçados no chão no final da tarde, para começar nossa
maratona de pegadinhas, risadas, sorrisos e sustos. Tudo corria de uma maneira
maravilhosa, assistimos a todas as estreias de filmes no cinema, entravamos em
lojas de vídeo game para jogar, até voltamos na loja de conveniência que
assombramos na nossa primeira noite, o balconista não era mais o mesmo.
Nossa rotina
era boa juntos, gostávamos um do outro, esquecíamos até que tínhamos existido
em épocas diferentes, ao lado de Bruno, tanto eu quanto ele esqueciam de que já
vivemos uma outra vida antes dessa.
Isso até certo
dia, quando estávamos caminhando por uma parte da cidade onde existiam diversos
prédios parecidos, casas feitas para serem alugadas com um custo baixo, eu
estava contando uma piada para ele e estávamos rindo muito, quando
repentinamente ele parou na frente de uma calçada, ficou pálido, até mesmo para
um fantasma, apertou forte a minha mão, olhou em direção da entrada de uma das
casas no pequeno prédio que estava do nosso lado e falou.
- Clau, é a minha casa...
- Nossa, você é praticamente
vizinho da minha falecida vó, vai querer entrar?
- É estranho, esse tempo todo que
passamos juntos, as vozes dos meus familiares que sussurravam em meus ouvidos
desapareceram, é como se eu tivesse esquecido completamente deles, e agora
parece ter voltado, estou sentindo algo mais forte, quer entrar comigo?
- Lógico, vamos lá.
De
mãos dadas fomos pelo caminho de pedrinhas que levava da calçada até a porta da
casa, fechamos os olhos para atravessar ela e em instantes estávamos na sala da
casa de Bruno, estava tudo escuro, era uma sala pequena, com um sofá e uma
poltrona próximos a TV, no final da sala uma pequena cozinha, com uma porta ao
lado que parecia ser o banheiro, a nossa direita tinha um corredor pequeno com
duas portas.
- Aqui, essa primeira porta é meu
quarto.
Como
dois fantasmas de mãos dadas adentramos o quarto dele, era um quarto espaçoso
até, tinha uma cama de solteiro no canto esquerdo um armário no canto direito e
uma escrivaninha cheia de livros e um computador fechado ao lado da porta de
entrada.
- Ele está arrumado, caso
contrário não conseguiríamos entrar nem sendo fantasmas.
Olhei
para ele, seu sorriso sempre aparecia para me deixar tranquila, mas tocando sua
mão eu conseguia sentir que ele não estava tranquilo. Saímos do quarto dele e
voltamos para o corredor, paramos na frente da porta do quarto de seus pais,
Bruno me olho, por um momento deve ter pensando em dar meia volta e sair,
observar seus pais poderia ser doloroso, mesmo assim ele segurou forte a minha
mão, fechamos os olhos e quando abri estava no quarto dos pais dele, mesmo
tamanho que o outro quarto, havia uma cama de casal logo ao nosso lado na
entrada, armários embutidos na parede, uma TV no canto oposto a da entrada e um
porta que levava a um banheiro reservado, o quarto estava ali, os pais de Bruno
não.
- A essa hora? Para onde devem
ter ido?
- Eu não sei Clau, não temos
parentes próximos e eles não gostavam de sair muito a noite, diziam ser coisa
de jovem.
- Vamos dar uma olhada na casa,
anda.
Bruno
voltou para o seu quarto, começou a mexer nas suas coisas, mostrou algumas
fotos antigas, mostrou sua velha coleção de gibis e depois voltamos para a
sala, na mesa onde a TV ficava ele mostrou algumas fotos de família, ficou ali
olhando as gavetas e eu fui até a cozinha, iria procurar alguma coisa que
pudesse nos dar um indicio de como seus pais se sentiam agora pós luto, não
demorei muito para encontrar algo, Bruno vinha logo atrás de mim e ficou atônito
quando apontei para a geladeira, pendurado nela estava uma foto de seus pais em
um quarto de hospital, os dois ao lado de uma cama e deitado nela um jovem
rapaz, entubado, a foto estava em uma espécie de porta retrato de papel com os
dizeres “Força Bruno”, o garoto deitado na cama do hospital era ele.
Nossas
mãos suaram, se olhamos e da janela da sala observamos os primeiros raios de
sol começarem a iluminar o dia, nos abraçamos e eu senti uma lagrima cair dos
olhos de Bruno, senti ele soluçar, me abraçar forte e depois tudo ficou escuro,
estava na hora do adeus.
A
aparição do Bruno foi uma das melhores coisas que me aconteceram do “Outro Lado”,
após aquele dia eu tentei continuar minha rotina da melhor maneira possível,
buscando tentar fazer o que fosse preciso para cumprir a minha “missão” e sei
lá, descansar em paz?
Ainda não
consegui, então volta e meia volto para cá, para o terraço desse edifico
empresarial onde beijei ele pela primeira vez e fico relembrando dos momentos
bons, gosto de imaginar Bruno acordando do coma, olhando seus pais e enchendo a
vida deles de alegria, vivendo sua vida jovem no mundo terreno novamente,
terminando a faculdade, escrevendo, encontrando uma nova namorada e a levando
ela para o cinema, gosto de fechar os olhos e pensar que ele vai conseguir
aproveitar os dias novamente e aproveitar as noites também, dormindo e
sonhando, talvez alguma vez sonhe com aventuras na madrugada junto de uma
menina de vestido branco, pele pálida e cabelos negros, que ele nunca vai saber
qual o nome, mas espero que ele lembre-se de que encheu as noites dela de calor
como se eles estivessem vivendo um dia ensolarado de verão, espero que ele lembre-se
de que encheu as noites dela de alegria com seu sorriso, carinho e atenção.
Espero que nos seus sonhos, ele tenha a
certeza de que fez essa alma solitária se sentir como se estivesse viva
novamente.